O homem estranho


História baseada em relatos recolhidos pela polícia de Mount Hill, Maryland, EUA, sobre fenômenos incomuns ocorridos entre 18 e 19 de junho de 1999, relacionados à um indivíduo não-identificado e desaparecido até o momento.

Do depoimento de Elmer Dupont, 48 anos, taxista, 22 de junho de 1999, 13:31hs:

"Ele entrou no táxi e antes que eu perguntasse o endereço, porque tem gente que esquece disso, tem uns que entram e esperam que a gente adivinhe pra onde querem ir, então, ele disse logo 'Hotel Crinchton' e só. Parecia que não era pessoa de falar muito, e na minha opinião, se eu tivesse uma voz daquelas, também não ia gostar de falar muito, parecia que ele sofria a cada letra que falava. O que aconteceu de estranho? Na hora do almoço desci do carro e vi que estava com pneus novos. Eu não quis acreditar, verificara eles naquela manhã antes de sair de casa e percebi que estavam carecas, precisando trocar. Quando fui olhar de perto vi que eram os mesmos pneus que eu havia colocado há 5 meses atrás, mas estavam novos em folha! E se precisar eu posso mostrar a nota fiscal deles pra provar, porque eles são meus, e policiais ou não, eu preciso dirigir pra garantir meu sustento, então sugiro que liberem meu carro, e com meus pneus nele."

Do depoimento do dr. Bean Armstrong, 39 anos, 23 de junho de 1999, 14:43hs:

"O paciente do quarto 68 tinha, no máximo, mais 2 semanas de vida. Havia sido diagnosticado um câncer de pulmão em estado avançado, e não havia nada que pudéssemos fazer, ele estava fraco demais para ser submetido a uma cirurgia. Estava declarado como indigente, não possuía um endereço fixo e dizia dormir na rua, ou em abrigos da prefeitura, quando conseguia vagas. Segundo ele mesmo contou, fumava desde os 17 anos, quando fugira de casa. É de se espantar que tivesse chegado aos 72 anos, e se não fosse morrer pelo câncer de pulmão, qualquer outra coisa poderia matá-lo, tal era seu estado de saúde."

Do depoimento de Ernest McMillen, 44 anos, dono do bar da esquina 23, 22 de junho de 1999, 16:05hs:

"Eram pouco mais de quatro horas da tarde, não havia nenhum outro freguês no bar, então eu pude reparar bem nele. Alto, magro, cabelos escuros, e apesar de aparentar uns 65 anos, no mínimo, se movia como se tivesse 20. Eu gosto de conhecer os meus clientes, por isso puxei um papo, perguntei de onde ele era, o que fazia na cidade. Ele não foi rude, apenas disse que não queria conversar. E que voz estranha! Eu nunca tinha ouvido nada assim, era como aquelas vozes de monstros dos filmes que a gente vê na tv. Pediu um Chivas Regal com gelo, e tomou de um gole só. Se ele não queria conversar, tudo certo, eu não iria enxer o saco do velho, o cliente sempre tem razão. Pediu uma segunda dose, e ficou encarando o copo por uns 5 minutos antes de tomar. Pagou com uma nota de cem, fez um sinal como se não quisesse troco e foi embora sem olhar pra trás. Pensei 'hoje é meu dia de sorte!' e ao me virar pra caixa registradora vi que todas as garrafas do bar estavam cheias. Não poderia ter sido nenhuma brincadeira do Clark - um garoto da redondeza que me ajuda a guardar as bebidas no depósito, - porque ele não viera aquela semana. A princípio achei que fosse água, e fui provar. Era bom demais para ser verdade! Eram os melhores vinhos, as melhores vodkas e os melhores whiskies que eu já havia provado na minha vida, e espero que me devolvam tudo, porque se estiver faltando um pingo das minhas bebidas, nós vamos resolver isso com o Juiz, estamos entendidos?"

Do depoimento de Anne Morgan, 35 anos, recepcionista do Hotel Crinchton, 23 de junho de 1999, 19:56hs:

"Cheguei ao Crinchton às 7 horas, como todo dia, e assumi a recepção junto com a Clarice (Clarice Fletcher, recepcionista do Hotel Crinchton) na troca do turno da noite, às 8 horas. A movimentação estava baixa, normal para um sábado, eu diria que haviam uns 10 ou 20 hóspedes no Hotel naquele momento. Quem atendeu ele foi a Clarice, eu estava ao telefone com a Sra. Martin (Martin Fletcher, aposentada, residente no Hotel), do quarto 145, que perguntava porque o café da manhã que ela pedira ainda não havia chegado. A única coisa que eu reparei foi a voz estranha, como se estivesse com a garganta inflamada ou coisa assim. Não vi quando ele se afastou, e demorei a perceber que a Clarice estava parada, sem fazer nada. Quando chamei por ela, ela não respondeu, olhei direito e vi aqueles olhos brancos! Encostei a mão nela e ela caiu no chão. Ela estava gelada. Aí gritei pra chamarem uma ambulância, ela precisava ser levada pro hospital. E sinto não poder auxiliar mais, espero que a Clarice se recupere logo. E posso ir embora agora? Minhas crianças sem dúvida estão com fome em casa!"

Do depoimento de Michael Bonera, 27 anos, pintor autônomo, 22 de junho de 1999, 14:30hs:

"Foi conversando com a Sarah (Sarah Prout, jornalista) que eu tive a ideia de pintar o parque Hutchinson. Como choveu na quarta e na quinta só pude ir ao parque na sexta. E que fique esclarecido, meu estilo de pintura não é nenhuma arte moderna, aquelas manchas e listras e formas sem sentido - odeio essa gente falsa que se diz 'artista' e pinta tanto quanto um gorila -, e tenho uma técnica especial que desenvolvi. Como tenho memória fotográfica, fico observando o local por 1 ou 2 minutos, e depois passo pro quadro o máximo que eu lembro, fazendo conferências quando não lembro de um ou outro detalhe. Eu fiquei observando o parque, e comecei a pintar. Algum tempo depois, quando fui conferir os carros que estavam estacionados, vi ele sentado no banco mas não dei muita atenção, ele não iria aparecer no quadro mesmo, meu objetivo era o parque. Depois de uns 10 minutos, olhei pro lado onde ele estava, pra ver os bancos, e ele estava sorrindo e olhando pra mim. Até agora eu me arrepio só de lembrar. Eu desviei o olhar e me escondi por um instante atrás do quadro. Quando olhei novamente, ele havia desaparecido, e naquele instante começou a chover. Eu mal tive tempo de cobrir o quadro e recolher minhas tintas e pincéis. Quando cheguei em casa, fui notar que o banco onde ele estava ficava bem no meio da praça. Ele não tinha como ter desaparecido assim de repente. Achei estranho, mas pensei comigo mesmo 'deve ser um cara daqueles programas de pegadinhas da tv, com truques e tudo mais' e tratei de esquecer o assunto."

Do depoimento de John Berthold, 46 anos, morador de rua, 25 de junho de 1999, 11:30hs:

"Eu não sei nada sobre o velho, ele só apertou a minha mão! [Caso colabore conosco, receberá almoço e alojamento no abrigo da prefeitura por um mês.] É sério isso? Eu quero ver escrito no papel e assinado! [Aqui está.] Olha, eu não sei ler, mas vou acreditar em vocês! Eu não sei o nome dele, ele apareceu naquela semana pelas ruas, mas o pessoal falava que por onde ele passava, deixava as coisas melhores, boas, sabe? Ninguém conversava com ele, diziam que ele tinha parte com o dem... er, com coisas do mal, sabe? Eu não sabia se era verdade ou não, e o melhor era ficar longe, eu preferia não descobrir mesmo... Mas quando ele apertou minha mão, e olhou no fundo dos meus olhos, eu percebi que era invenção tudo que falavam dele. É difícil explicar, eu me senti muito bem, como na época em que vivia junto com minha esposa e meus filhos, uma coisa boa assim por dentro, sabe? Paz! Isso, é essa a palavra! Paz, foi o que eu senti. Eu estava dormindo e quando acordei, ele estava do meu lado me olhando. Pensei em me afastar e ele estendeu a mão. Não sei porquê que eu apertei a mão dele, foi meio sem querer, sabe? Quando eu levantei pra guardar os meus pedaços de papelão, me dei conta que minhas roupas estavam novas e aí ele já tinha ido embora. E se tem uma coisa que eu posso dizer, é que ele é uma boa pessoa."

Dos depoimentos de James Taylor, Charles Miler e Harry Calvert, 16 anos, estudantes, 22 de junho de 1999, 17:10hs:

"(Charles) Vocês não vão contar pro nossos pais sobre isso, né?
(James) Se meu pai descobre que eu estava matando aula, ele vai ficar uma fera comigo...
(Charles) Eu falo o que sei sobre aquele homem, se vocês prometerem que nenhum dos nossos pais vão ficar sabendo disso, okey?
[Tudo bem, está combinado.]
(Charles) Quem começa falando?
[Quem quiser, fiquem à vontade.]
(James) Deixa comigo, eu começo. A gente saiu do colégio na hora do recreio, as duas últimas aulas eram de Matemática e é difícil aguentar a Sra. Humboldt com aquela voz de taquara rachada. A gente foi até o Johnny Bar e comprou uma Coca, e sentamos na calçada pra tomar.
(Charles) E aquele pão-duro do Johnny não quis nos dar 3 copos, disse pra tomarmos todos num só...
(James) Quando a gente tava quase acabando de tomar foi que ele chegou. E perguntou pro Charles porquê a gente tava fora da aula.
(Charles) Não foi pra mim, foi pro Harry!
(Harry) A voz dele era diferente. Uma voz rouca, estranha...
[Harry, quais foram as palavras dele?]
(Harry) Ele falou como se me conhecesse. Ele disse: 'Hey, garoto, vocês três deveriam estar aprendendo agora, não?' Eu me senti como se estivesse cometendo um crime...
(Charles) E eu te falei que era besteira. Quem é que nunca matou aula?
(James) A verdade é que eu também me senti culpado, até ele continuar falando...
(Charles) Isso daí ele falou pra mim! Eu juro que ele leu meus pensamentos! Eu tava pensando onde a gente ia usar as merdas que ensinam pra gente no colégio e o cara sorriu pra mim e falou: 'Não se preocupem, o que vocês aprendem lá, não ajuda muito aqui.'
(James) Estranha foi a frase que ele falou na hora de ir embora... Tu lembra, Charles?
(Charles) Eu não... Tava tentando entender como ele sabia o que eu tava pensando...
(Harry) Foi assim: 'Longos dias e belas noites, jovens-sai, eu digo a verdade e você diz obrigado, ah diz sim!'. E ainda: 'Fazia muito tempo que eu não dizia essas palavras pra ninguém, mas vocês merecem.' E depois ele foi embora.
(James) Isso mesmo, 'longos dias e belas noites'... Enquanto ele falava, eu me senti bem, como acordar depois de passar um dia dormindo...
(Charles) Eu não lembrava disso que ele disse, mas me senti bem... Lembrei de quando meu pai me levava pra pescar com ele...
[Vocês viram pra que lado ele foi?]
(James) Não, uma hora ele tava na minha frente, e depois tinha sumido.
(Charles) Eu te disse que ele se escondeu atrás do carro...
(Harry) Eu olhei atrás do carro, ele não tava lá. Ele só... se foi."

Do depoimento de Clarice Fletcher, 39 anos, 30 de junho de 1999, 10:30hs:

"Comecei meu turno junto com a Anne às 8 horas da manhã, e o movimento estava normal, eu estava organizando umas cartas e não vi ele se aproximar do balcão da recepção. Quando me dei conta, ele estava ali. Pedi desculpas, e perguntei no que poderia ajudá-lo. Ele só disse 'Oi, Clarice' e olhou pra mim... E os olhos dele... Vocês vão achar que eu estou louca, mas eu tive a impressão de que ele era muito, muito mais velho do que parecia. Os olhos dele eram profundos, foi como se eu estivesse olhando pro céu à noite, num lugar afastado, e só havia uma estrela lá. Eu não sei por quanto tempo eu fiquei olhando praquela estrela, digo, pros olhos dele. Aquilo fez eu me sentir bem, me sentir tranquila, como se não houvessem mais problemas, nem bandidos, nem ladrões... Quando me dei por conta, estava deitada no chão, e a Anne gritava, chamando um médico, pedindo que ligassem para alguma ambulância. Eu estava me sentindo bem, não via motivo de todo aquele alarde. Ela me ajudou a levantar e me levou até o banheiro pra lavar o rosto... E foi aí que eu vi meus olhos. Estavam brancos! Aí eu desmaiei, e só acordei aqui no hospital. Levantei da cama e fui correndo ao banheiro para ver meus olhos no espelho, e estão normais, castanhos, como sempre foram, mas o dr. Armstrong disse que eu devo ficar mais uns dias sob observação."

Do depoimento de Louise Affleck, enfermeira, 28 anos, 23 de junho de 1999, 15:38hs:

"Fui eu que o liberei, sim. Mais tarde, quando o dr. Armstrong me mostrou os exames eu não quis acreditar que fora detectado um câncer ou qualquer coisa nele. Eu voltava da ala da maternidade, e ele estava em pé na porta do quarto observando o corredor. Quando me aproximei, ele disse: 'Enfermeira, eu me sinto bem, gostaria de ir pra embora.' Ora, estamos no verão, ninguém gosta de ficar em um hospital quando poderia estar em casa, ou passeando no parque. Quando perguntei-lhe porquê havia sido internado, ele só soube dizer: 'Vim pra cá porque tinha doença.' Analisei-o e ele estava com a saúde perfeita, e nisso posso apostar meu diploma. Nenhum sintoma de nada, muito menos câncer. Pedi se ele sabia quem era o médico responsável, ele falou 'Armstrong'. Eu sei bem como o dr. Armstrong vive reclamando do excesso de trabalho e pensei 'vou aliviá-lo dessa carga!'. Preenchi os papéis para a liberação, e pedi que ele assinasse embaixo. Ele saiu pela porta da frente e não o vi mais."


Do [Relatório Final] elaborado pelos investigadores:

"1. O homem referido nos depoimentos é alto, magro, foi visto com a barba bem feita, cabelos negros escuros, curtos, e não carregava nada consigo. Sua identidade não foi identificada.
2. O líquido contido nas garrafas de Ernest McMillen é o mais puro possível, dentre cada categoria. A análise química dos elementos confirmou que o vinho passou por, no mínimo, 150 anos de envelhecimento, e o mesmo pode se dizer do whisky. Foram recolhidas amostras de cada garrafa.
3. Os três alunos tiveram seus pais notificados pela fuga do colégio, e foram liberados após o depoimento.
4. Segundo o dr. Armstrong, a enfermeira Louise Affleck é digna de confiança, e se ela preencheu os papéis de liberação é porque o paciente estava bem.
5. As roupas de John Berthold foram observadas e não há nada que indique um tempo de uso maior do que 12 horas [A ordem de reserva de alojamento por 1 mês no abrigo de Lumbermill, foi encaminhado ao supervisor do abrigo].
6. Os pneus de Elmer Dupont foram conferidos e o número de série confere com as notas fiscais apresentadas, registrando a compra dos pneus no dia 4 de janeiro de 1999. O perito garante que aqueles pneus não rodaram nem três quilômetros para chegar na Delegacia.
7. A jornalista Sarah Prout confirmou por telefone que Michael Bonera não consome drogas e é um amigo de infância, sendo, portanto, seu depoimento, digno de confiança.
8. O histórico médico de Clarice Fletcher não aponta nenhum distúrbio mental ou psicológico e os testes feitos nela e em Anne Morgam indicam normalidade.
9. Está sendo investigada a hipótese de que o paciente (tratado doravante como [P]) liberado pela enfermeira Affleck e o homem causador desses estranhos eventos (tratado doravante como [H]) sejam a mesma pessoa, mas não há nenhuma prova nesse sentido.

Ordem cronológica dos fatos, em horários aproximados:
dia 11, 9:35hs - [P] pede a liberação do hospital.
dia 18, 7:10hs - John Berthold aperta a mão de [H].
           8:30hs - [H] entra no táxi de Elmer Dupont, pedindo para ir ao Hotel Crinchton.
           8:40hs - [H] chega ao Hotel, e encontra Clarice Fletcher.
dia 19, 15:00hs - Michael Bonera vê [H] no parque Hutchinson.
           16:00hs - [H] entra e bebe no bar de Ernest McMillen.
           16:20hs - [H] encontra James Taylor, Charles Miler e Harry Calvert na rua de trás do Colégio Green Star.