Conto


Olhando para fora da janela ele via o céu azul, de um tom mais claro que a sua camiseta, e as árvores ao longe, circundando a área da mansão. Mesmo que quisesse, não poderia sair de seu quarto. Segundo suas contas, seria amanhã o dia do passeio no pátio. Duas vezes por semana, geralmente depois do dia em que o almoço era composto de vegetais, alguém vestido de branco - Mellis se recusava a chamá-los de "enfermeiros" - vinha buscá-lo e o acompanhava numa caminhada pelo pátio da mansão. O gramado sempre estava bem aparado, bem como os arbustos, mantidos numa altura de 60cm. Numa de suas caminhadas anteriores, perguntara à moça de branco se poderia caminhar perto dos muros. Ela se limitou a olhar para ele, mantendo sempre aquele sorriso falso no rosto e sua mão na dela.
Ele, então, tomou a iniciativa e foi caminhando para o extremo do pátio. Naquele lado, a grama estava coberta de folhas secas, caídas das árvores do lado de fora, e o muro parecia bem mais alto do que visto da mansão. Devia ter quase cinco metros de altura, de um branco desbotado pelo tempo.
Bateram à porta do quarto, indicando que alguém ia entrar.

- Boa tarde, Mellis! Está um belo dia hoje, não? - disse o doutor. Doutor porque se diferenciava dos enfermeiros: além da camisa branca, usava um jaleco branco, e os doutores conversavam com ele. Pareciam querer dele respostas que ele não tinha, como se ele soubesse de algo muito importante.
A vontade que Mellis tinha era correr, passar pelo doutor e pelo enfermeiro que o acompanhava e sair. Simplesmente sair, para qualquer lugar longe dali. Ele tinha algumas lembranças de uma casa, onde ele possuía uma bicicleta, e a imagem de (sua mãe?) uma mulher com longos cabelos negros e um frequente sorriso no rosto. (Qual era mesmo a cor da bicicleta? Um dia ele soubera, e, assim como todas lembranças de antes da mansão, estava esquecendo de tudo pouco a pouco.)
Mas ele sabia que não adiantaria tentar correr. Haviam mais enfermeiros no final do corredor e nas escadas. Nos primeiros dias na mansão ele conseguiu escapar do doutor e do enfermeiro em seu quarto e chegar ao corredor. Correu em direção às escadas porém antes que pudesse alcançá-las mãos fortes o seguraram por trás, levantando-o do chão, ao mesmo tempo que via outro enfermeiro chegando ao segundo andar, pronto para impedir qualquer passagem por ali.
- Boa tarde - respondeu.
- Como está se sentindo hoje?
- Bem.
- Muito bom! Vamos fazer alguns testes? - dizendo isso, abriu a maleta que trazia consigo, retirando de lá uma folha de papel em branco, um lápis e fazendo um sinal com a cabeça, o enfermeiro se adiantou e ligou dois eletrodos em suas têmporas.
'Como se eu tivesse alguma escolha', pensou Mellis. 'Tomara que acabe logo'.

- Hoje as questões serão simples. Garanto que você poderá respondê-las facilmente e em pouco tempo - disse o doutor. - Aqui, pegue esta folha e escreva a resposta para a questão que irei ler.
- Certo.
O enfermeiro alcançou o gravador para o doutor, e permaneceu segurando uma caixa, do tamanho de uma caixa de sapatos, de onde saíam os fios ligados aos eletrodos em suas têmporas. O doutor disse:
- Para registro: Paciente Mellis Hampton, 14 anos. Dia 86, Teste 12, questões de opinião frente a ações diárias. Documento com as respostas será anexado posteriormente. Início: 15:43hs. Primeira questão: Visualize a cena onde você precisa lavar uma certa quantidade de louça suja; você está parado na frente de um balcão, com uma pia ao centro, no lado esquerdo do balcão está a louça suja, no lado direito do balcão há um espaço vazio para colocar as louças lavadas. Você tem à sua disposição uma esponja, sabão e detergente. Descreva no papel em branco quais os procedimentos detalhados que você executaria.
'Hã? Querem saber como eu iria lavar a louça? Que treco mais simples...' - e começou a escrever.

'Pego a esponja, abro a torneira, molho as mãos e a esponja, fecho a torneira. Coloco algumas louças sujas dentro da pia, passo detergente na esponja e começo a ensaboar as louças, colocando-as em seguida no lado direito do balcão. Vou repetindo o processo até que as louças estejam limpas.'

- Mas assim você deixaria as louças ensaboadas, e não prontas. Continue, por favor - disse o doutor.
- Tudo bem.

'Quando todas as louças estivessem ensaboadas, eu abriria a torneira, lavaria a esponja, jogaria água no lado esquerdo da pia, onde estavam antes as louças sujas, limparia aquele lado, e depois de enxaguar as louças, colocaria elas no lado limpo.'

- Desse jeito está bom?
- Sim, perfeitamente. Você não sentiu nada diferente ao imaginar a cena?
- Não, me sinto normal.
- Então, terminamos por hoje - dizendo isso, o enfermeiro se adiantou e removeu os eletrodos, enquanto o doutor pegava gentilmente o papel e o lápis da escrivaninha.
Assim que os dois se retiraram, Mellis levantou as mãos de seu colo, e viu que elas estavam molhadas e com sabão, como se ele realmente houvesse lavado as louças de sua imaginação.


Depois daquele teste, Mellis ficou intrigado. Nunca havia presenciado algo semelhante, nem imaginava que tinha poderes. Naquela noite, levou algum tempo rolando na cama até conseguir dormir.
No outro dia, durante o passeio ao pátio, ele não quis caminhar pelo mesmo caminho de sempre. Como a enfermeira se limitava a sorrir e manter sua mão na dela, ele tomou a iniciativa e começou a conduzir a caminhada para os fundos da mansão. Contornaram a mansão pelo lado direito, e ele viu algo que não tinha visto ainda - já que sempre recebia suas refeições no quarto, e os testes e provas também eram aplicados por ali mesmo. - Viu outro "paciente", outro interno, assim como ele! Embora tivesse suspeitas de que não era o único naquela mansão enorme, nunca havia visto nenhuma outra pessoa que não vestisse aqueles jalecos brancos ou o uniforme branco dos enfermeiros. E a surpresa não foi só da parte dele. O outro garoto também parou, olhando para ele atônito. Parecia muito mais surpreso do que ele, como se estivesse por ali há pouco tempo. Então, num ímpeto, o garoto se desvencilhou do enfermeiro que o segurava e saiu correndo na direção de Mellis.
"SOCORRO! ME AJUDE!" - foi o que ouviu diretamente na sua mente.
Aquela invasão inesperada de algo que deveria ser completamente particular e inviolável assustou Mellis.
"
Você consegue ler meus pensamentos?" - ele pensou em resposta.
"
SIM CONSIGO MAS POR FAVOR ME AJUDE A SAIR DAQUI!" - como definir que os gritos pareciam ensurdecedores, se ele não ouvia nada, apenas aquelas palavras brotando aos berros em sua cabeça, vindas claramente do garoto que corria em sua direção?
"
Acalme-se! Estou pensando nisso e vou bolar um plano para nos tirar daqui." - pensou ele.
"
Obrigado Mellis! Meu nome é Thomas, mas pode me chamar de Tommy."
O enfermeiro alcançou Tommy e segurou bruscamente seu braço, fazendo o garoto cair no chão. A enfermeira que acompanhava Mellis disse:

- Está na hora de voltarmos - e foi levando-o de volta pelo caminho por onde vieram.
Ao se virar para voltar para a frente da mansão, ainda surpreso com tudo que estava acontecendo, Mellis viu num relance que a parte de trás da mansão era idêntica à parte da frente.

Mellis ficou pensando nos dois ocorridos, mas principalmente no outro garoto, no desespero que havia em sua voz, uma angustiante ânsia por libertação. Ele havia dito que tinha um plano, mas não tinha nada além de algumas ideias, e decidiu fazer algo a respeito.
A primeira coisa a fazer era entender seus poderes. Não sabia exatamente como havia feito para que suas mãos ficassem molhadas e ensaboadas no outro dia. E como provavelmente deveria estar sendo observado o tempo todo, inclusive àquela hora, talvez uma câmera escondida em seu quarto, precisaria tomar cuidado com o que fazer. Levou algum tempo pensando e eliminando diversas possibilidades até encontrar uma satisfatória: tentaria abrir a janela. A tranca estava com defeito há vários dias, e o reparo ainda não tinha sido feito. Caso ela se abrisse - como ocorrera numa noite de temporal - não teria nada que o ligasse ao fato.
Deitou-se na cama, cobriu-se com as cobertas e concentrou-se. Imaginou a janela se abrindo. Nada. Olhando fixamente para ela, pensando na solidez da madeira e na tranca defeituosa, tentou mais uma vez e nada. Tentou lembrar o que fizera de diferente no outro dia. Fechou os olhos e pensou no vento que seria necessário para abrir a janela. Imaginou esse vento vindo com força contra a janela, fazendo-a se abrir e bater contra as grades e nesse momento uma forte lufada de ar entrou no quarto, levantando parte de suas cobertas e causando um arrepio de frio. Abriu os olhos e olhou para as janelas, mas elas continuavam fechadas. Cansado, virou-se para o lado e dormiu.
Na manhã seguinte, um enfermeiro trouxe o café-da-manhã e foi abrir a janela. Notou a tranca aberta, mas viu que a mesma estava com problema. Pensou consigo que o conserto devia estar agendado e não comentou nada com ninguém, para sorte de Mellis, que continuava sem entender seus poderes.

"Isto está acabando comigo", pensou Mellis, pela milésima vez. "Não aguento mais ficar o dia todo trancado aqui sem fazer nada." Ficar parado em seu quarto não era bom. As poucas lembranças que tinha do tempo em que não estava na mansão não ajudavam nem um pouco a reconfortá-lo.
Sua memória era como um livro com algumas páginas rasgadas e muitas rabiscadas, ilegíveis. Não lembrava de muitos fatos, apenas fragmentos como estar correndo com outros garotos, brincando juntos. Mellis, Joe, Abraham e Fourty, e muitas lembranças envolviam eles quatro. Eles andando de bicicleta pela periferia da cidade em uma cena, folheando uma edição da Penthouse que Abe pegara escondido de seu pai em outra. Tudo era diversão, tudo era permitido e tudo estava bem quando estavam juntos.
Sentiu a cabeça doer ao tentar lembrar o que acontecera e parou de tentar lembrar. Estava pronto para fazer outra tentativa de entender seus poderes quando bateram à porta. O doutor entrou, e logo atrás dele um enfermeiro, carregando a caixa dos eletrodos, que certamente seriam ligados à sua têmpora para mais um teste.
- Olá, Mellis! Como vai?
- Estou bem.
- Ótimo. Tenho mais um teste para você. Farei algumas perguntas e vamos ver as suas reações - e inclinou a cabeça, sinalizando ao enfermeiro para que ligasse os eletrodos. - Tudo certo?
- Tudo. - "Como se fosse certo eu viver trancado num quarto o tempo todo, num lugar estranho, onde eu não conheço nada nem ninguéma e fazem testes comigo como se eu fosse uma cobaia, mas tudo bem..."
- Ok, vamos lá! - e ligou o gravador. - Para registro: Paciente Mellis Hampton, 14 anos. Dia 99, Teste 14, testes de reflexo memorial, reações frente a eventos passados. Documento com as respostas será anexado posteriormente. Início: 14:52hs. Primeira questão: Qual é a lembrança mais remota que você tem da sua infância?
"Teste 14? Não lembro de ter feito o teste número 13... E como se eu já não tivesse tentado lembrar de coisas assim antes", pensou Mellis. E resolveu ser sincero.
- Eu lembro de uma mulher de cabelos compridos estendendo os braços pra mim e sorrindo. Mas eu não enxergo isso com os meus olhos, enxergo como se eu estivesse olhando isso do lado, e assisto a mim abraçando essa mulher. Acho que é minha mãe. Eu estava chorando. Tinha caído de bicicleta e ela cuidou de mim.
- Ótimo, segunda questão: Qual é a lembrança mais triste que você tem?
- Não sei - respondeu após pensar um pouco. - Não consigo lembrar de nada triste, até ser trazido pra cá - comentou amargamente.
- Nada mesmo? Tente se esforçar um pouco mais.
Ele sabia que devia ter passado por algum acontecimento que o deixasse triste, mas mesmo fazendo um esforço para recordar, não conseguia lembrar de nenhum fato concreto que pudesse contar ao doutor, apenas alguns flashes, gritos, alguma queda, mas não sabia de quem eram os gritos ou quem é que havia caído.
- Não, não consigo lembrar de nada.
- Tudo bem, terceira questão: Você encontrou outro garoto no pátio esses dias e ele pediu ajuda? Pretende fazer alguma coisa a respeito?
Aquela pergunta pegou Mellis completamente desprevenido. Surpreso, respondeu:
- Sim, Thomas pediu a minha ajuda, pediu socorro e disse que queria sair daqui, mas não há nada que eu possa fazer...
Esperava tranquilizar o doutor daquela maneira, mas se surtiu algum efeito, ele não deixou transparecer nada em sua expressão.
- Ok, terminamos por hoje. - e saíram, deixando Mellis a sós novamente, entregue a seus pensamentos.
"Eu deveria ter esperado algo assim. E não menti para eles, não tenho nada a fazer para ajudar, pelo menos até entender como é que molhei minhas mãos aquele dia."

TO BE CONTINUE...